POSTAGENS

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O HOMEM INSTRUI E REPREENDE ÀQUELE QUE VERDADEIRAMENTE AMA!

Foi assim que aconteceu comigo: Fomos, e ainda somos uma família numerosa de dez irmãos, meninos e meninas saudáveis, atletas e artistas!
Em tempos distantes, dividíamos uma chácara de mais ou menos uns 300 alqueires de área, de fácil localização! Sua topografia era ótima, semi plana e totalmente acercada por nascentes e pequenas cataratas; cuja extensão de campo se fazia necessária para pastagens e plantações!
Naquela época, levávamos uma vida de rei, uma infância arteira, turbulenta e gostosa, não tendo tempo ruim para se fazer seleções! As árvores nos serviam de abrigos, e os campos abertos faziam de conta que eram nossos centros esportivos, parques e praças.
Ali, naqueles campos maneiros, ficávamos propícios a entretenimentos, quedas de braços, partidas de futebol e andanças de bicicletas, servindo também para ocasiões que dispensassem grandes formalidades, como namoros ou conversinhas moles!
Minha mãe cuidava do almoço, enquanto nós arávamos a terra para novas plantações de milho, arroz e feijão. Meu pai, aquele velho tinhoso, exigente, rabugento e chato, não parava de nos repreender, impondo-nos autoridade em cima de varas, xingamentos e correções!
Era ele um senhor muito magro, desajeitado, de falhos de barba, roupas maltratadas e de chapéu engraçado. Ficava pitando seu cigarro mal cheiroso, enquanto roçava a inchada pelo chão em busca de leguminosos para o nosso próximo desjejum! 
Às manhãs, enchíamos as latas de leite, ordenhadas pelas tetas das vacas, no intuito de destiná-las a usina mais próxima, na fabricação de doces, queijos, manteigas, etc.. A partir dali, começava nosso cansativo martírio, dentre tantas lutas, sofrimentos e trabalhos suados, visando atingir alvos para a família “Conrado”!
Quanto às nossas instruções e entretenimentos, apesar de morarmos na roça, sempre estudamos nas melhores escolas das adjacências, e frequentamos as mesmas festas e badalações!
Éramos os "irmãos prodígios", assim referido pela vizinhança enxerida, devidas cumplicidades e idades equivalentes a pouco menos que dois degraus. Quanto aos nossos nomes, começavam com uma mesma inicial, finalizando sempre com apelidos esquisitos, como Rui, Dete, Sôn e assim por diante.  
O tempo foi-nos passando tão depressa, como um sobrevoar de uma gavinha apressada! Crescemos o dobro do esperado, tendo-nos que nos transformar, de muitos a únicos!
Assim, nos individualizamos, personalizando uma aparência robusta, séria e incivilizada; dissociando, assim, nossa tão abençoada cumplicidade familiar!
Muitos de nós, ambicionados pelas modas tecnológicas das cidades grandes, havíamos conquistado independências, sendo preciso buscar um futuro brilhante em outras capitais!
Meus dois irmãos maiores, por exemplo, estando no terceiro semestre de um ano sugestivo a grandes plantações, imigraram para regiões vizinhas, no intuito de se estabelecerem remuneradamente!
            Digo também, que alguns, levados por gênios travessos e por caminhos tortuosos, envolveram-se em vícios, gandaias, jogatinas e drogas, arrependendo-se não muito tempo à data de hoje!
Todavia, olhando-os tomarem caminhos diversos, sabia que aquilo que era bom entre nós estava prestes a desaparecer, devido às novas práticas e os novos costumes indo-se de contra mão ao ambiente gostoso de chácara ao qual desfrutávamos!
Do mesmo modo que eles, eu também sonhava por um tempo melhor do que aquele que vivia na roça! Além de que, eu era um pião desajeitado e cru, um simples caipira, rústico e desbocado, mas de boa instrução!
 Porém, mesmo sendo um capiau de roça, não conseguia afastar-me daquela terrinha verde, abençoada e acolhedora, e nem daquela gente suada, atracada as suas rotinas chulas, rústicas e costumeiras!
Além de que, gostava de cuidar dos bichos, adubar as plantações, arar a terra e guarnecer os chiqueiros! Eram coisas que meu pai havia me ensinado, me instruído e me qualificado! Não sei dizer o porquê dessa minha escolha! Apenas amava o que fazia, e pronto!
Minha vida no campo era boa, quando comparada aos assomos da tecnologia das cidades avançadas! Eu não gostava do que ouvia nas rádios, televisões e jornais, quando me envenenavam seus noticiários sobre crimes, assaltos, contrabandos, extorsões, desastres, sequestros e mortes!
No entanto, uma coisa é certa, não estando em mim o direito de esconder, mentir ou omitir a verdade! Posso estar seguro de que essas práticas ruidosas também vinham sendo vistas em cidades de campo como a minha; pois, de fato, ainda hoje, a criminalidade vem contribuindo para a nossa desestruturação, atingindo todo o Brasil com suas facções contrárias às leis morais e aos bons costumes; chegando a ocupar parte dos terrenos cobertos por matos!
Reafirmo que temos vivenciado a violência aqui conosco, noite e dia, mas, porém, em grau inferior às grandes capitais! A meu ver, isto mostra que as propriedades rurais têm servido, muitas vezes, de pontos de esconderijos para desertores!
Mas, apesar dos pesares, aquela vidinha campesina e grotesca de campo era tudo pra mim, ainda que a tecnologia estivesse se estendendo cada vez mais entre os terrenos rurais! Eu tinha internet, mas não tinha amigos a quem compartilhar ou curtir! Eu tinha telefone portátil, mas faltava-me assunto para enviar torpedos ou mensagens!
 No entanto, uma coisa era certa e não pode ser esquecida: Era o trato rude do meu pai para comigo! Mesmo entrando em idade maior, abusando de eletrônicos modernos e comendo a melhor comida de campo, eu continuava sendo repreendido e admoestado severamente por aquele velho ranzinza, de mãos calosas, unhas compridas, cabelos crespos e veias grossas!
Não entendia a maldade de seu destratamento! Afinal, eu era o único que restara em sua companhia, dentre uma turminha boa de dez irmãos! Fazia tudo que me pedia, como seu vassalo, como um cumpridor de seus exercícios, um subordinado sujeitado a um capataz mal criado! Sentia-me como uma rocha do mar, sendo açoitada pelas ondas tempestuantes das águas!
Apesar de amar tudo que fazia, não tinha a menor pretensão de continuar sujeitando-me de escravo! O que meus irmãos haviam-me deixado de legado, era um pai frio, distante e autoritário; um dominador que me inquiria até as tripas do meu intestino! Assim, tinha que continuar na lida, trabalhando de sol a sol ou de chuva a chuva, sentindo-me desprezado, rejeitado e lançado aos abutres!
Para mim, os piores dias que já passei foram quando, em poucas vezes, meus irmãos vinham nos visitar! Eu ficava de butuca, silencioso atrás da porta, espiando aquele velho turrão sedentário, de sessenta anos, tomando-os em cerimônias e em muitos banquetes!
Era um tal de ficarem se abraçando, trocando presentes e se bajulando, como se eu não existisse na família, tendo-me como um João Ninguém desajeitado e sem prumo na vida!
As reuniões eram sempre ao ar livre, encerradas com as melhores carnes de curral e bebedeiras geladas, como cervejas, vinhos e cachaças! Ficavam curtindo os sons da viola de um errante cantarolador, ou mesmo, ouvindo os grandes mestres nacionais no aparelho de som!
Quanto a mim, que sempre estive do lado daquele velho ranzinza e ingrato, nunca fui recebido com honras ou aplausos, só arrogâncias e mandatos; e nem ao menos as migalhas dos banquetes me sobravam, tendo que me refugiar aos porcos, cavalos, gatos e cachorros!
Enquanto meus irmãos cheiravam perfume francês, eu fedia estrume de boi, lavagem de porco ou merda de vaca! Lembro-me de vê-los desfilando suas roupas caras e importadas, enquanto me contentava com meus simples trapos e minhas botas desengonçadas!
Muitos anos fiquei me excomungando entre campos, pastos e chiqueiros, executando serviços braçais, quando também, ia acumulando muitas raivas! Chorava sozinho, totalmente amargurado e constrangido pela indiferença e insensibilidade do meu pai para comigo! Achava que não me amava o tanto como amava os seus filhinhos queridos, ingratos e mal agradecidos! Filhos que o deixaram desamparado, o rejeitaram e se envergonhavam de seu mal cheiro e de seus maus trapos!
No entanto, como tudo que é vivo um dia acaba se definhando, meu pai entrava nessa fase de mudanças físicas e psicológicas! Suas forças esgotaram-se, tornando o corpo mais frágil e delicado! Seus cabelos esbranquiçaram, perdendo os reflexos auditivos e as capacidades visuais! Para andar, precisava ser amparado por bastões, homens ou andadeiros! Por consequência, dependia de mim para locomovê-lo a um simples banheiro, estando completamente sujeitado aos meus cuidados!
Eu o olhava ao ponto de vomitá-lo as minhas indignações e os meus conflitos internos! No entanto, ele apenas sorria-me de modo único, angelical e gostoso, tratando-me à vontade e com melhores sutilezas!
Num certo dia que não estava esperando, senti que me olhava de um modo diferente aos outros dias, como se quisesse e precisasse me dizer algo! No entanto, lembro-me de vê-lo suspirar algumas vezes, mantendo a garganta estrangulada e os olhos úmidos. Logo, falando baixinho, engasgado e muito cadenciado, recostou-se ao meu peito ofegantemente e se alegrou!
Eu tinha pena dele, ao mesmo tempo em que não me sobrava qualquer tipo de afeiçoamento, carinho ou remorso! Estava ferido, dilacerado e compromissado com meus traumas e minha vulnerabilidade caprichosa!
Queria chorar, como todas as vezes que chorei sozinho! Mas as lágrimas vinham secadas dos olhos, motivadas pelo brio desgostoso e pelo meu maldito orgulho ferido!
Assim, antes que alguma coisa inútil e imprestável saísse de minha garganta, ou que, porventura, lhe faltasse com algum respeito, ele, simplesmente, topou mão em parte do meu braço, dizendo-me seguidamente: "Filho meu! Estou velho e acabado! Minhas forças esgotaram-se! A você, tenho confiado o meu campo, minha chácara, minha usina de leite, meu gado, minha plantação e minha vida! Em minha mocidade, o treinei para que fosse melhor que a mim nos dias de minha velhice! Vejo que meu esforço e investimento não foram em vão! Estou feliz porque vejo que és o meu melhor soldado, ao qual, o que nunca vi nos seus irmãos, sempre enxerguei em ti! Assim, tudo o que é meu, se torna nosso!"
Emoção maior não poderia sentir naquela hora! Emocionadíssimo, fiquei-me autoflagelando à custa de remorsos e arrependimentos, devidas injúrias atiçadas contra ele no passado! Deveria saber que aquele velho autoritário me amava incondicionalmente, ao ponto de preparar-me para as boas colheitas dos dias vindouros!
Tinha que ter em mente que, como pai, nunca desprezaria ou deixaria de amar seus outros filhos; filhos ingratos, que se esqueceram de seus conselhos, que se comprometeram com gastos excessivos, que se individualizaram em cidades grandes e que lhe abandonaram!
Todavia, tendo em memória a parábola do "filho pródigo", hoje entendo o seu tão maravilhoso legado para comigo! Certamente, sempre amou esse seu filho rejeitado acima de toda riqueza, todo dinheiro e toda magnificência; sabendo que nunca me desampararia, assim como jamais viria sair do meu convívio!
Se não fosse por ele, eu não estaria ali! Afinal, confiava em mim e me amava incondicionalmente, ao ponto de entregar-me tudo que havia conquistado durante uma vida inteira!
Eu era seu sucessor, àquele que levaria seu nome, que seguiria adiante os seus interesses, os seus costumes, os seus ideais e os seus planos, como uma corrente ligada a fios elétricos ou a elementos condutores!
Oh grande homem que queria apenas o meu bem, e que, todo tempo me ensinava, me instruía e me fortalecia, não me deixando afastar do ponto de partida e nem estragar os meus valores!
Hoje, tenho ciência que precisei passar pelo fogo, ser repreendido, instruído e admoestado, para, somente depois, vim receber tão maravilhosa benção e recompensa!
Tive que ser trabalhado, moldado e lapidado, como joia rara, preciosa e de boa qualidade; tendo agora que dar sequência àquilo que meu querido e velho pai tinha principiado e adquirido por meio de esforços e trabalhos brutos!

Afinal, assim como Deus Pai nos instrui, nos capacita, nos ensina e nos exorta, sendo-nos considerados seus filhos amados, na sua vez, o homem também é capaz de instruir e repreender àquele que verdadeiramente ama! Aliás, foi assim que aconteceu comigo!

 
                                Texto ilustrado em primeira pessoa, cujos protagonistas são fictícios!
                                                                                       
                                                                    Gláucia Cardoso